sexta-feira, 13 de junho de 2008

Desconhecido

Já era tarde, e as árvores que passavam pelas janelas do ônibus eram tão somente linhas um pouco mais negras em meio à escuridão da noite. Fechou o livro e apagou a lâmpada acima de sua poltrona. A cabeça agora pendia para o lado direito, e a mente voltava-se para a mata fechada que ela pouco conseguia ver naquela altura da noite.
Sempre que ia visitar seus pais, pensava, ao olhar para aquela vegetação já familiar, sobre o que poderia haver por detrás das folhas verdes – apenas sombras à noite – que beiravam o caminho da estrada.
O ônibus estava lotado, e a época da Páscoa de fato movimentava as estradas. Não sabia se eram as pessoas que movimentavam as rodovias ou se era a própria Páscoa que agia materializada sobre o asfalto. Lembrou do garoto que empanturrava-se de chocolate no início da viagem. “Teria ele já vomitado?”. Não. Precisaria de mais alguns bombons, mas não tardaria.
A paz dita alcançada no feriado tomava conta de todos no ônibus. Não havia um só pensamento egoísta. Pelo menos não na concepção habitual de egoísmo. Os gestos de caridade não eram para saciar a fome dos mendigos, mas para a coletividade ver; e os chocolates não eram para os filhos empanturrarem-se, mas para ganhar uma identidade conferida apenas a quem se deixa levar pela maré.
Não era frio, mas precisou interromper seus pensamentos para pegar um casaco na mochila. Olhou para a poltrona ao lado. Ficara aliviada quando a senhora cheia de histórias e valores dormira. Somente assim pode começar sua leitura sobre Dr. Jeckill e Dr. Hide. Onde estaria o lado monstro da "quase-freira" que dorma no banco ao lado?
Por um instante, quis saber onde estava o outro lado das pessoas que lhe cercavam. Olhou novamente para as árvores e esqueceu da idéia. Retomou o pensamento sobre o que havia de desconhecido após as árvores. Estava demasiadamente concentrada para perceber que o garoto sujo de chocolate que corria ao banheiro não queria vomitar. Se visse aquele jovem rosto por uma fração de segundo, teria reconhecido o sinal do medo.
Foi quando pareceu ter visto uma sombra mais escura na mata que as luzes do ônibus apagaram-se. Ouviu-se um único grito vindo das poltronas da frente. Desejou que as luzes não voltassem.
Em princípio, sentiu-se aliviada por não passar pelo estranho evento sozinha. Havia mais algumas pessoas com quem compartilharia aquele momento. Em seguida, frustrou-se por não saber como os outros reagiam. E por alguns segundos ninguém ousou pronunciar uma palavra sequer.
Ainda não era conhecido o motivo da escuridão, mas voltou a concentrar-se no interior do ônibus quando uma senhora gorda ergueu-se da poltrona n. 4 e bateu secamente na cabine do motorista, exigindo explicações. Não houve resposta. Se a senhora houvesse permanecido na poltrona, talvez não tivesse o mesmo fim do motorista. Alguém lhe atacou pelas costas, vindo de algum ponto desconhecido no ônibus, e o grito que se ouviu depois ficou claro mesmo para quem jamais havia visto alguém morrer.
O pânico exalava de cada corpo ainda vivo, e os gritos de pavor seguiram o grito de morte. Um a um, os passageiros foram ecoando o que começou nas poltronas da frente. Não sentiu medo de morrer. Sentiu medo de ser a última a morrer. Não se importava com seu destino, desde que fosse igual ao dos demais.
Ninguém foi poupado. As lágrimas de sangue não demoraram a escorrer de seu pescoço, e a imagem que pôde ver em seus últimos reflexos foi a de um corpo enorme caminhando – como quem volta para casa – em direção à mata fechada.

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