terça-feira, 16 de setembro de 2008

O Forasteiro e o Cadáver

Os olhos fixos não condiziam com a situação da figura esquálida que adentrava o vilarejo. Os passos firmes e seguros negavam a condição de forasteiro daquele magro homem, cujas calças balançavam nas esporádicas vezes em que o vento lhe tocava. Não trazia boas novas aos aldeões daquela pequena comunidade, estabelecida em algum lugar sob o céu da Espanha. Puxava uma velha carroça, bastante debilitada, ainda fora das cercanias da vila, trazendo o corpo sem vida do que alguma vez fora um homem.

“Não temos jazigos disponíveis”, disse o forasteiro ao ser recebido pelo padre local. “Todos os jazigos de que dispomos em nossa vila são de propriedade das famílias que lá residem, Padre. Talvez haja algum sob a guarda de sua capela”, continuou, ainda distante alguns metros do pároco.

O Padre – cujo cabelo confirmava já ter ultrapassado a barreira dos setenta anos – respondeu positivamente ao desconhecido, pelo que ouviu ainda outra solicitação “Não temos um padre em nossa comunidade, mas somos religiosos. Gostaríamos de encaminhar a alma deste homem da maneira devida. Somos religiosos o bastante para desejar um funeral digno até mesmo a um indigente, como este que vos entrego”. Se houvesse pronunciado alguma palavra, o padre teria dito “Amém”.

O forasteiro vinha de uma aldeia desconhecida, mas seu povo era como o do padre no que se refere às crenças religiosas. A pequena comunidade do pároco mobilizou-se, então, para realizar o último ato socialmente significante do cadáver que lhes visitava. Possivelmente, seria até mesmo mais digno que a vida que o pobre homem vivera.

“O que fazia ele?”, “Não tinha família?”, “Morreu de quê?”. O forasteiro ouviu muitas perguntas enquanto centrava todas as atenções na única rua – e parecia mais um pátio – que havia no vilarejo. Embora fosse claro seu empenho, o forasteiro limitou-se a poucas explicações – “Encontramos o corpo caído, já sem vida, em frente aos portões de nossa vila”, dizia, enquanto colaborava com os aldeões no preparo do velório.

Ao final daquela tarde, o corpo falecido já deitava sobre um caixão de madeira, pobre como seu próprio rosto, no centro da pequena capela da vila. Praticamente todos os cerca de 70 habitantes do pequeno vilarejo já haviam visitado o local. Ainda assim, a curiosidade insaciável – comum a quem ainda não sabe o bastante – sobre o homem que conheceram morto levaria muitos a repetir a visita durante a noite.

O enterro, previsto para a manhã seguinte, certamente levaria a maioria dos aldeões ao terreno nos fundos da capela, onde jaziam os corpos dos ancestrais daquela pequena comunidade.
Pequenas aldeias não são inóspitas. São previsíveis como chuvas de fim de tarde. A monotonia – típica do cotidiano vazio de uma comunidade fechada – desperta o imaginário dos homens, levando-os a delirar sobre o mundo fora das cercanias. Um mundo que poderiam conjeturar e imaginar como lhes fosse conveniente. O cadáver vinha de fora, e ainda se ouvia perguntas e teses sobre quem fora em vida aquele a quem preparavam o descanso eterno.

Um assassino punido com o ostracismo por seu povo, e entregue à própria sorte? Um santo que faria pairar sua bênção sobre aqueles que o recebessem para dar-lhe paz pelo infinito? O forasteiro partiu antes das respostas, assim que teve certeza da realização do cerimonial. Já tinha certeza de que poderia confiar em seus irmãos de crença.

Rumou de volta à sua terra, sem igreja e sem padre. Deixava para trás um cadáver e levava consigo a certeza do dever cumprido. No vilarejo do qual se retirava, deixara um mistério. Simples, mas suficiente para uma lenda local. O pequeno povoado daria uma nova identidade ao homem morto, e o forasteiro estava certo disso, tanto quanto do inverso.

Na sala principal da capela – que só não era a única porque ainda havia o confessionário e um pequeno quarto atrás do altar – ainda havia o que fazer. Uma jovem donzela arrumava a mesa com pão e chá, oferecidos a quem quisesse acompanhar os últimos momentos sociáveis daquele corpo.

Quando encheu para si uma caneca com chá, ouviu mais do que o ruído da porta sendo aberta pelo padre. O corpo gemera. Os olhos antes fechados do homem morto agora a fitavam, amarelos como o sorriso de um moleque levado. O estrondo do caixão caindo dos fracos cavaletes não foi páreo para o grito aterrorizado da garota. Em seguida, um gemido de fúria ecoou pela capela, e a vida da moça não foi longa o bastante para compreendê-lo. Com os dois braços, o homem – ou o que fosse aquele ser – quebrou-lhe o pescoço com destreza e amassou-lhe o crânio com um único murro.

O terror que assolava o padre, então estático junto à porta de entrada, tomou-lhe algum tempo antes que pudesse reagir. No momento único em que seu olhar encontrou o do cadáver, teve certeza de que aquele ser inexplicável o queria. Correu gritando palavras das quais jamais se lembraria, saindo em disparada pela porta da frente da capela.

Se o padre conseguiu correr o bastante, melhor sorte não tiveram as tricoteiras que já supunham histórias fantásticas sob o luar nas proximidades da capela. Foram poucos os golpes e arranhões que as levaram à morte. Eram, então, só mais alguns pedaços de carne espalhados pela terra batida, tarefa fácil para o animal em que o corpo antes tido por inerte se transformara.

O que seguiu naquela noite quente de verão foi uma caçada mortal por toda a pequena vila, que foi fechada isolada do resto do mundo assim que o forasteiro pisara com os dois pés do lado de fora, como era costume em certa altura da noite.

Os aldeões resistiram enquanto suas portas e janelas suportaram a fúria insana do assassino que perambulava em volta das casas. Mas a madeira fraca custou muitas vidas. Um a um, os vivos foram caindo ao chão, inertes como o futuro que lhes recebia, até que restassem apenas nove, reclusos na capela onde o morto-vivo iniciara sua caçada.

Aquele era o prêmio por concederem honras fúnebres a um cadáver desconhecido: um povo aniquilado quase por inteiro e nove vidas encurraladas em volta de um altar. O padre, esperançoso, inspirou-se em sua fé e dirigiu-se à única janela ainda aberta para exorcizar o suposto demônio que movia o morto-vivo.

Sem que pudesse ver de onde vinha o golpe, o padre foi puxado com violência para fora da capela e atirado alguns metros adiante pelo cadáver. Deitava ainda consciente no chão. Não correu. Sequer esforçou-se em levantar. O padre encomendou a própria alma nos poucos segundos que o assassino levou para aproximar-se novamente.

Os oito remanescentes no interior da capela trataram de garantir suas próprias vidas intactas por mais alguns instantes e fecharam rapidamente a janela pela qual o padre fora puxado. Lá fora, o padre morreu com um único golpe. O cadáver não lhe mordeu a carne, mas devorou-lhe ao cometer o simples ato de matar.

Esperaram.

Quando os primeiros raios de sol acordavam mais uma manhã, um único homem dentre os sobreviventes decidiu enfrentar sua própria covardia e sair da capela, onde passara um par de horas recluso. Tinha vontade de expandir seus limites como jamais tivera dentro das cercanias da pequena vila. Pisou do lado de fora da capela e rezou para que o corpo estivesse novamente inerte.

Os portões da vila estavam estranhamente abertos, e o cadáver, ensangüentado, jazia de modo que ninguém poderia supor se caíra ao entrar ou ao sair da aldeia.

Havia, então, muito a fazer. Casas a reconstruir, provisões a estocar… Muitos corpos ainda precisariam de um lugar debaixo da terra daquele vilarejo. À exceção de um.

Os olhos fixos não condiziam com a fragilidade de quem passou a noite acordado. Eram, contudo, reflexo de quem vence a luta pela sobrevivência. Os dois braços trêmulos do homem franzino puxavam uma pequena carroça, onde jazia um cadáver inerte.

O corpo deixou o vilarejo da mesma maneira como foi recebido: aparentemente morto. Não havia mais padre para os ritos fúnebres.
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O conto "O Forasteiro e o Cadáver" foi escrito para participação no 2º Concurso de Contos do Overlook Hotel < http://overloookhotel.wordpress.com/ >

Um comentário:

Unknown disse...

E por sinal "papou" o 1º lugar. Parabéns,

Grande abraço,