terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Aguardando a Vez - Microconto

- Eles chamam pelo número da senha, não da idade.

E a velhinha voltou ao seu lugar..

terça-feira, 16 de setembro de 2008

O Forasteiro e o Cadáver

Os olhos fixos não condiziam com a situação da figura esquálida que adentrava o vilarejo. Os passos firmes e seguros negavam a condição de forasteiro daquele magro homem, cujas calças balançavam nas esporádicas vezes em que o vento lhe tocava. Não trazia boas novas aos aldeões daquela pequena comunidade, estabelecida em algum lugar sob o céu da Espanha. Puxava uma velha carroça, bastante debilitada, ainda fora das cercanias da vila, trazendo o corpo sem vida do que alguma vez fora um homem.

“Não temos jazigos disponíveis”, disse o forasteiro ao ser recebido pelo padre local. “Todos os jazigos de que dispomos em nossa vila são de propriedade das famílias que lá residem, Padre. Talvez haja algum sob a guarda de sua capela”, continuou, ainda distante alguns metros do pároco.

O Padre – cujo cabelo confirmava já ter ultrapassado a barreira dos setenta anos – respondeu positivamente ao desconhecido, pelo que ouviu ainda outra solicitação “Não temos um padre em nossa comunidade, mas somos religiosos. Gostaríamos de encaminhar a alma deste homem da maneira devida. Somos religiosos o bastante para desejar um funeral digno até mesmo a um indigente, como este que vos entrego”. Se houvesse pronunciado alguma palavra, o padre teria dito “Amém”.

O forasteiro vinha de uma aldeia desconhecida, mas seu povo era como o do padre no que se refere às crenças religiosas. A pequena comunidade do pároco mobilizou-se, então, para realizar o último ato socialmente significante do cadáver que lhes visitava. Possivelmente, seria até mesmo mais digno que a vida que o pobre homem vivera.

“O que fazia ele?”, “Não tinha família?”, “Morreu de quê?”. O forasteiro ouviu muitas perguntas enquanto centrava todas as atenções na única rua – e parecia mais um pátio – que havia no vilarejo. Embora fosse claro seu empenho, o forasteiro limitou-se a poucas explicações – “Encontramos o corpo caído, já sem vida, em frente aos portões de nossa vila”, dizia, enquanto colaborava com os aldeões no preparo do velório.

Ao final daquela tarde, o corpo falecido já deitava sobre um caixão de madeira, pobre como seu próprio rosto, no centro da pequena capela da vila. Praticamente todos os cerca de 70 habitantes do pequeno vilarejo já haviam visitado o local. Ainda assim, a curiosidade insaciável – comum a quem ainda não sabe o bastante – sobre o homem que conheceram morto levaria muitos a repetir a visita durante a noite.

O enterro, previsto para a manhã seguinte, certamente levaria a maioria dos aldeões ao terreno nos fundos da capela, onde jaziam os corpos dos ancestrais daquela pequena comunidade.
Pequenas aldeias não são inóspitas. São previsíveis como chuvas de fim de tarde. A monotonia – típica do cotidiano vazio de uma comunidade fechada – desperta o imaginário dos homens, levando-os a delirar sobre o mundo fora das cercanias. Um mundo que poderiam conjeturar e imaginar como lhes fosse conveniente. O cadáver vinha de fora, e ainda se ouvia perguntas e teses sobre quem fora em vida aquele a quem preparavam o descanso eterno.

Um assassino punido com o ostracismo por seu povo, e entregue à própria sorte? Um santo que faria pairar sua bênção sobre aqueles que o recebessem para dar-lhe paz pelo infinito? O forasteiro partiu antes das respostas, assim que teve certeza da realização do cerimonial. Já tinha certeza de que poderia confiar em seus irmãos de crença.

Rumou de volta à sua terra, sem igreja e sem padre. Deixava para trás um cadáver e levava consigo a certeza do dever cumprido. No vilarejo do qual se retirava, deixara um mistério. Simples, mas suficiente para uma lenda local. O pequeno povoado daria uma nova identidade ao homem morto, e o forasteiro estava certo disso, tanto quanto do inverso.

Na sala principal da capela – que só não era a única porque ainda havia o confessionário e um pequeno quarto atrás do altar – ainda havia o que fazer. Uma jovem donzela arrumava a mesa com pão e chá, oferecidos a quem quisesse acompanhar os últimos momentos sociáveis daquele corpo.

Quando encheu para si uma caneca com chá, ouviu mais do que o ruído da porta sendo aberta pelo padre. O corpo gemera. Os olhos antes fechados do homem morto agora a fitavam, amarelos como o sorriso de um moleque levado. O estrondo do caixão caindo dos fracos cavaletes não foi páreo para o grito aterrorizado da garota. Em seguida, um gemido de fúria ecoou pela capela, e a vida da moça não foi longa o bastante para compreendê-lo. Com os dois braços, o homem – ou o que fosse aquele ser – quebrou-lhe o pescoço com destreza e amassou-lhe o crânio com um único murro.

O terror que assolava o padre, então estático junto à porta de entrada, tomou-lhe algum tempo antes que pudesse reagir. No momento único em que seu olhar encontrou o do cadáver, teve certeza de que aquele ser inexplicável o queria. Correu gritando palavras das quais jamais se lembraria, saindo em disparada pela porta da frente da capela.

Se o padre conseguiu correr o bastante, melhor sorte não tiveram as tricoteiras que já supunham histórias fantásticas sob o luar nas proximidades da capela. Foram poucos os golpes e arranhões que as levaram à morte. Eram, então, só mais alguns pedaços de carne espalhados pela terra batida, tarefa fácil para o animal em que o corpo antes tido por inerte se transformara.

O que seguiu naquela noite quente de verão foi uma caçada mortal por toda a pequena vila, que foi fechada isolada do resto do mundo assim que o forasteiro pisara com os dois pés do lado de fora, como era costume em certa altura da noite.

Os aldeões resistiram enquanto suas portas e janelas suportaram a fúria insana do assassino que perambulava em volta das casas. Mas a madeira fraca custou muitas vidas. Um a um, os vivos foram caindo ao chão, inertes como o futuro que lhes recebia, até que restassem apenas nove, reclusos na capela onde o morto-vivo iniciara sua caçada.

Aquele era o prêmio por concederem honras fúnebres a um cadáver desconhecido: um povo aniquilado quase por inteiro e nove vidas encurraladas em volta de um altar. O padre, esperançoso, inspirou-se em sua fé e dirigiu-se à única janela ainda aberta para exorcizar o suposto demônio que movia o morto-vivo.

Sem que pudesse ver de onde vinha o golpe, o padre foi puxado com violência para fora da capela e atirado alguns metros adiante pelo cadáver. Deitava ainda consciente no chão. Não correu. Sequer esforçou-se em levantar. O padre encomendou a própria alma nos poucos segundos que o assassino levou para aproximar-se novamente.

Os oito remanescentes no interior da capela trataram de garantir suas próprias vidas intactas por mais alguns instantes e fecharam rapidamente a janela pela qual o padre fora puxado. Lá fora, o padre morreu com um único golpe. O cadáver não lhe mordeu a carne, mas devorou-lhe ao cometer o simples ato de matar.

Esperaram.

Quando os primeiros raios de sol acordavam mais uma manhã, um único homem dentre os sobreviventes decidiu enfrentar sua própria covardia e sair da capela, onde passara um par de horas recluso. Tinha vontade de expandir seus limites como jamais tivera dentro das cercanias da pequena vila. Pisou do lado de fora da capela e rezou para que o corpo estivesse novamente inerte.

Os portões da vila estavam estranhamente abertos, e o cadáver, ensangüentado, jazia de modo que ninguém poderia supor se caíra ao entrar ou ao sair da aldeia.

Havia, então, muito a fazer. Casas a reconstruir, provisões a estocar… Muitos corpos ainda precisariam de um lugar debaixo da terra daquele vilarejo. À exceção de um.

Os olhos fixos não condiziam com a fragilidade de quem passou a noite acordado. Eram, contudo, reflexo de quem vence a luta pela sobrevivência. Os dois braços trêmulos do homem franzino puxavam uma pequena carroça, onde jazia um cadáver inerte.

O corpo deixou o vilarejo da mesma maneira como foi recebido: aparentemente morto. Não havia mais padre para os ritos fúnebres.
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O conto "O Forasteiro e o Cadáver" foi escrito para participação no 2º Concurso de Contos do Overlook Hotel < http://overloookhotel.wordpress.com/ >

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Tô me guardando pra quando o carnaval chegar...

Pra quem não leva o carnaval a sério, segue um textinho abaixo:



“Já faz muito tempo, mas nem tanto tempo assim. Foi naquele carnaval de 1979, em que a Mocidade Independente de Gafanhoto Alegre ganhou o título nos pênaltis em cima da Nenê de Vila Madalena.

Eu ainda era moleque, não sabia muito da vida. Só sei que, antes do desfile, estávamos todos no barraco – hoje chamam de quadra – da Gafanhoto, preparando os últimos detalhes para o grande desfile. Um ano todo dedicado àquele momento especial. A apoteose de cada uma das vidas que caminhariam sobre o asfalto quente da avenida.

Era um dia mágico. As últimas marteladas eram acompanhadas pelo samba frenético da bateria, sempre presente, e dos gritos do seu Adalberto Negão, o puxador daquele samba-enredo, que a toda hora chamava 'alô comunidade gafanhotense'.

As alegorias estavam quase prontas, e foi então que ela adentrou o recinto. Com penas de alguma ave exótica na cabeça, um fio dental curtíssimo e uma cobertura mínima no busto. Eu nada mais pude fazer à exceção de contemplá-la.

Minha alma de garoto exaltava-se na medida em que ela se aproximava. Sua fantasia estava pronta, e ela parecia a personificação do carnaval. Brilhante como um pote derramado de purpurina, sambando como uma lhama com cãibra, ela era a visão mais bela que minhas convicções poderiam supor.

Aproximei-me dela e puxei conversa. Katrilenny era a graça da moça. Nenhum objeto mais adequado à conversa do que o carnaval que estava por começar. Perguntei-lhe se estava empolgada com o desfile que logo começaria. “O carnaval é a minha vida”, disse , em tom alegre.

'A gente passa o ano todo trabalhando duro pra poder pagar a fantasia no carnaval', continuou. 'É o único luxo que temos, e precisamos batalhar por ele'. Nesse exato momento, Katrilenny me pareceu desdentada, mas acho que foi só impressão. Por um instante, retirei minha mente do barraco, e pensei no que a moça havia me dito. 'É o único luxo que temos'. Mas quem decidiu que esse seria o único luxo? Quem determinou que ela teria que trabalhar o ano inteiro para gastar todos os seus ganhos em uma fantasia?

Achei que seria melhor deixar essas indagações de lado. Perguntei à moça se aceitaria uma cerveja. Ela recusou, afirmando que não fazia as coisas pela metade. Se bebesse, o faria até cair, mas era noite de avenida, e ela precisava desfilar. Em mais uma espécie de visão paranormal, Katrilenny me pareceu vesga.

Perguntei, então, em que ala desfilaria. Por coincidência, desfilaríamos na mesma ala. Ela finalmente deu sinais de que eu me daria bem naquela noite. 'Parece que o destino tá preparando uma amizade legal pra nós dois'. Concordei e seguimos para fora do barraco.

Marcamos um encontro para o dia seguinte, mas ao chegar em casa, reparei que meu dinheiro já não mais estava em meu bolso. 'Katrilenny, sua vagabunda', pensei.

Eu já estava de saco cheio daquela mulata, e pouco me importava com o resultado daquela bosta de carnaval. Admiti meus próprios pensamentos, concluindo que aquela festa tinha como único objetivo liberar todo mundo pra cometer as sacanagens que não podem cometer durante o ano.

Que gente mais besta. Passa um ano inteiro pra poder beber, roubar e fazer uns filhos por aí sem sentir culpa. Eu é que não iria mais me entregar a essa falta de consciência.

Finalmente eu notava que não me importavam os atos. Assim como Katrilenny, eu somente queria praticá-los quando todos os julgassem adequados.

Foi então que tive uma idéia brilhante: montaria uma fábrica de lantejoulas. Assim, eu passaria o ano inteiro gastando o que ganhei no carnaval, enquanto esses pobres coitados passariam o ano inteiro se matando pra me dar o sustento através das milhões de lantejoulas que comprariam de minhas fábricas.

Fiquei pensando se conhecia alguém que me emprestasse um dinheiro para começar o projeto da fábrica. Acho que eu não conhecia ninguém. Também não pensei em ninguém para administrar meu projeto. Mas se o projeto era meu, por que eu precisava de alguém para administra-lo? Bom, agora, isso não vem ao caso.

Ocorreu que a Mocidade de Gafanhoto Alegre ganhou o carnaval, e passaram todos em frente de casa. Katrilenny sorrindo e me chamando para a festa. Não parecia mais desdentada nem vesga. Um rapaz que não gostava de carnaval disse que eu parecia cego. O desfile da campeã seria no dia seguinte. Deixei minhas idéias de construir fábricas de lado e parti com a multidão, embalado pelo som dos tamborins.

Se eu houvesse lido Maquiavel, entenderia que o povo, massa convencionada, vai com os vencedores, mesmo que não compreenda a vitória.

Neste carnaval, o enredo da Mocidade de Gafanhoto Gripado foi composto em minha homenagem. Em homenagem a 1979, em que o filho pródigo voltou ao lar, ou seja, como eu voltei pro carnaval. Desfilarei como personagem principal em um carro que homenageia os deuses gregos.

Se eu tivesse ido à escola – a regular, não a de samba – talvez – eu disse ‘talvez’ – eu entendesse as críticas daqueles que diziam que a história do filho pródigo não se passava na Grécia, e era tema de uma religião monoteísta. ‘Monoteísta’... monoteísta é a mãe!

Não sei de mais nada. Só sei que o carnaval deveria durar o ano inteiro neste país abençoado por Deus e animado pela bateria. O samba é a minha vida, e o carnaval é a minha cara.”

Joel do Cavaquinho tem hoje 46 anos, ainda não sabe ler, nunca tocou cavaquinho, não entende de música nem de bateria, não se pergunta de onde vêm as lantejoulas que compõem sua fantasia, achou muito elegante ser entrevistado pela repórter “moça bonita da tv” e é considerado um símbolo da agremiação “Mocidade Independente de Gafanhoto Alegre”.

Desconhecido

Já era tarde, e as árvores que passavam pelas janelas do ônibus eram tão somente linhas um pouco mais negras em meio à escuridão da noite. Fechou o livro e apagou a lâmpada acima de sua poltrona. A cabeça agora pendia para o lado direito, e a mente voltava-se para a mata fechada que ela pouco conseguia ver naquela altura da noite.
Sempre que ia visitar seus pais, pensava, ao olhar para aquela vegetação já familiar, sobre o que poderia haver por detrás das folhas verdes – apenas sombras à noite – que beiravam o caminho da estrada.
O ônibus estava lotado, e a época da Páscoa de fato movimentava as estradas. Não sabia se eram as pessoas que movimentavam as rodovias ou se era a própria Páscoa que agia materializada sobre o asfalto. Lembrou do garoto que empanturrava-se de chocolate no início da viagem. “Teria ele já vomitado?”. Não. Precisaria de mais alguns bombons, mas não tardaria.
A paz dita alcançada no feriado tomava conta de todos no ônibus. Não havia um só pensamento egoísta. Pelo menos não na concepção habitual de egoísmo. Os gestos de caridade não eram para saciar a fome dos mendigos, mas para a coletividade ver; e os chocolates não eram para os filhos empanturrarem-se, mas para ganhar uma identidade conferida apenas a quem se deixa levar pela maré.
Não era frio, mas precisou interromper seus pensamentos para pegar um casaco na mochila. Olhou para a poltrona ao lado. Ficara aliviada quando a senhora cheia de histórias e valores dormira. Somente assim pode começar sua leitura sobre Dr. Jeckill e Dr. Hide. Onde estaria o lado monstro da "quase-freira" que dorma no banco ao lado?
Por um instante, quis saber onde estava o outro lado das pessoas que lhe cercavam. Olhou novamente para as árvores e esqueceu da idéia. Retomou o pensamento sobre o que havia de desconhecido após as árvores. Estava demasiadamente concentrada para perceber que o garoto sujo de chocolate que corria ao banheiro não queria vomitar. Se visse aquele jovem rosto por uma fração de segundo, teria reconhecido o sinal do medo.
Foi quando pareceu ter visto uma sombra mais escura na mata que as luzes do ônibus apagaram-se. Ouviu-se um único grito vindo das poltronas da frente. Desejou que as luzes não voltassem.
Em princípio, sentiu-se aliviada por não passar pelo estranho evento sozinha. Havia mais algumas pessoas com quem compartilharia aquele momento. Em seguida, frustrou-se por não saber como os outros reagiam. E por alguns segundos ninguém ousou pronunciar uma palavra sequer.
Ainda não era conhecido o motivo da escuridão, mas voltou a concentrar-se no interior do ônibus quando uma senhora gorda ergueu-se da poltrona n. 4 e bateu secamente na cabine do motorista, exigindo explicações. Não houve resposta. Se a senhora houvesse permanecido na poltrona, talvez não tivesse o mesmo fim do motorista. Alguém lhe atacou pelas costas, vindo de algum ponto desconhecido no ônibus, e o grito que se ouviu depois ficou claro mesmo para quem jamais havia visto alguém morrer.
O pânico exalava de cada corpo ainda vivo, e os gritos de pavor seguiram o grito de morte. Um a um, os passageiros foram ecoando o que começou nas poltronas da frente. Não sentiu medo de morrer. Sentiu medo de ser a última a morrer. Não se importava com seu destino, desde que fosse igual ao dos demais.
Ninguém foi poupado. As lágrimas de sangue não demoraram a escorrer de seu pescoço, e a imagem que pôde ver em seus últimos reflexos foi a de um corpo enorme caminhando – como quem volta para casa – em direção à mata fechada.

Valores (?) no Trem

De vez em quando eu escrevo uns contos, pra desenvolver a escrita e expressar algumas idéias. Abaixo segue um acerca da utilização da máscara dos gestos "bons" em relação a suas motivações. Eu geralmente descrevo mais elementos e não deixo muita coisa subentendida, mas este conto, em especial, tem mais pontos a deduzir. Segue abaixo:



Entrou rapidamente assim que a porta do metrô abriu. A cintura larga e a pele lisa davam a impressão de menos idade em relação ao que o cabelo totalmente branco e curto aparentava. Passou pelo banco reservado para idosos e fez uma careta de irritação. Havia dois jovens sentados, um rapaz com estilo de surfista e uma garota rechonchuda de bochechas rosadas e saudáveis. A preocupação com a falta de educação dos jovens impediu-o de reparar nos três lugares vazios que havia no vagão. Não se dirigiu aos que indevidamente ocupavam aquele banco, restringindo-se a transparecer sua irresignação em sua expressão facial.

Pouco depois, um outro senhor, esquálido e visivelmente fraco – o que era corroborado pela grande curvatura em suas costas – passou diante dos jovens. Os outros três lugares não estavam mais vagos, e os olhos do envelhecido homem dançavam buscando uma vaga para seu corpo, que continuava a mover-se arrastadamente.

Foi quando uma mulher obesa, cujas feições lembravam a de um porco, que estava sentada em frente ao senhor de cabelo totalmente branco, levantou-se e gentilmente cedeu seu lugar ao velho. De tão caquético, ele mal teve forças para agradecer, sentindo o alívio de escorar suas ancas já sem músculos em um banco qualquer.

O homem de cabelos brancos imediatamente iniciou um discurso venerando a atitude responsável e educada da mulher com cara de porco, ressaltando a falta de valores que assola a juventude dos novos tempos. O tom do discurso elevava-se juntamente com a aceleração do trem. A mulher reiterou as palavras que ouvia, dizendo que havia nascido em uma família marcada pela boa educação e pelos costumes humanitários, e seus gestos eram tão somente efeitos da boa criação que teve.

A jovem rechonchuda, atenta, ergueu-se e parou em pé, na frente do outro jovem, que dirigiu a ela um olhar de indagação. "Estão falando de nós", respondeu. O jovial rapaz, ao compreender a resposta, ergueu-se imediatamente e ambos permaneceram em pé, ao lado do banco reservado para idosos.O banco seguiu vazio, e assim permaneceu até que o trem chegasse à última estação, sob os ruídos do discurso exemplar do senhor de cabelos brancos atrapalhando a melodia das rodas em atrito com os trilhos.

Inerte

Era só mais uma madrugada. A xícara com café continuava parada sobre a mesa, estática. A tela do computador pareceu menos nítida do que de costume quando fechou aquela janela em sua frente. Não se sentia mais ligada aos próprios braços apoiados sobre a mesa do teclado, e os olhos parados não mais fingiam. Seu corpo era finalmente um retrato de si mesma, o resultado final de uma equação cuja resposta ela insistiu em alterar por longos anos.


Não soube precisar o que de fato acontecera, e acontecer era algo que sua existência não concebia. Somente sabia que as cores já não eram tão vivas como antes. O café já não estava quente o bastante. Tinha sob seu controle tanto quanto possuiu quando acreditava ter tudo. Nada. Crenças não constroem fatos. Precisava agir, mas não conseguia mover um músculo sequer.


A respiração transpassava-lhe as cavidades nasais, causando na atmosfera fria do quarto uma ligeira nuvem. Céus, o que alguém mais faria em uma situação daquelas? Não havia alguém mais. Nem menos. Havia um único corpo inerte, deixando que os poucos feixes de luz artificial que adentravam seu quarto atingissem-lhe as costas.


Enquanto pensava, experimentava a sensação de um dejavu que faz dos fatos mais previsíveis. Pois não eram. E, como observadora inerte que era, somente pôde esperar e torcer por movimentos. Talvez espasmos. Alguém haveria de tirá-la dali. E logo.


Nada era tão simples. Simples como esperar que o sol surgisse e desse à grama o poder de crescer. Ou de querer crescer. Já não havia sinais de ânimo naquele corpo que ainda guardava vestígios de uma juventude recente.


Reparava cada vez menos nas cores, que naquela altura já se resumiam a tons de cinza espalhados como borras em uma tela que não fora exposta. Nada voltava a fazer sentido. Ou a parecer fazer sentido. Os carros na rua faziam mais barulho do que de costume. “Estou recobrando meus sentidos aos poucos”, pensou ao ouvir o som do movimento do lado de fora do quarto. E reforçou a idéia quando as cores voltaram a avivar-se em volta de seus olhos, embora não pudesse dar forma a elas.


Esperou – e esperar era algo que fazia bem – por mais alguns segundos para que pudesse interpretar o que sua visão tentava lhe mostrar. O som dos carros fazia-os parecer mais rápidos. E fortes. Talvez imbatíveis naquele momento. As cores ganhavam forma, finalmente.


Por fim, viu os tons de verde, vermelho e azul desenharem uma imensidão de flores, que caiam sobre ela aos montes, formando um desenho sem significado sobre sua silhueta, que era então o centro de órbitas que não podia alcançar.


As flores ganhavam novos coloridos, quando sentiu seu corpo puxado, na velocidade dos carros que aceleravam do lado de fora do quarto. Não sabia onde caía, mas não se importava com a ausência do chão. Jamais se preocupara com o solo em que pisava.


E quando as últimas flores lhe caiam sobre a face, ouviu alguém dizer, ao lado de seu ouvido: “Ide em paz”. E não fez tanta diferença para quem já era morta em vida.

Os Invasores

Eram vários. Eu tinha contado doze até o momento em que começou a sair da parede o que pensei ser o último deles. Ocupavam a sala, como se estivessem em uma festa esperando para cantar os parabéns. Ficavam mais perto de onde minha televisão ligada transmitia algum programa de auditório, como insetos que, à noite, ficam mais perto de onde há luz.
Mas não eram insetos. Tinham cabeças, braços, pernas, mãos e pés. De onde, diabos, vieram aqueles caras que saiam das paredes como quem sai de uma barraca de camping?
Fiquei pensando em cada um dos indivíduos que ocupava minha sala de estar e em quanto tempo permaneceram detidos por trás do bege claro que cobria todas as paredes do meu lar. Por quanto tempo um ser humano normal suportaria permanecer inerte? Nenhum deles parecia ser normal.
Apenas alguns instantes depois, sem sequer pensar no que aqueles homenzinhos estranhos fariam a seguir, percebi que já havia passado algum tempo desde que saíram das paredes. Só então voltei à racionalidade: o inexplicável não era eles terem suportado a inércia por tanto tempo, mas sim o fato de haverem simplesmente saído de paredes sólidas - até hoje lembro do trabalho que o encanador teve para consertar um vazamento no banheiro do meu quarto.
De fato, não eram normais. Tentei acordar, como acontece algumas vezes nos meus sonhos mais imbecis, mas não consegui. Eles estavam ali, os doze, andando lentamente pela sala, sem destino definido. Eram fortes o bastante para vencer a solidez das paredes. Não seria bom se decidissem que o seu destino era contrário ao meu.
Eu estava, naquela altura, na pequena bancada que delimita a cozinha, ou melhor, a área em que costumava preparar minhas refeições. Ao perceber que não sabia nada sobre os “invasores”, temi que pudessem, de alguma forma, atacar-me. Empunhei de imediato, num agir inconsciente, a frigideira que repousava sobre uma boca apagada do fogão. Ato contínuo, ergui o braço que a segurava e me senti ridículo. Estavam em maior número, e eu não iria muito longe com uma frigideira. Até onde eu havia contado, como já referi, eram doze.
Na verdade, naquele momento, aumentei a soma para treze, considerando o que vinha se arrastando do pequeno corredor que levava aos quartos. Ele vinha para a sala. E eu estava na sala. Eu não estava exatamente na sala, mas minha cozinha não chegava a ser um cômodo em separado. Eu podia ser o destino deles. Ou o alvo.
Mas também havia o fato de estarem em volta da televisão. Era noite, e talvez o alvo fosse a luz. A luz que vinha da televisão. Sim, eu ainda tinha chance. Talvez eles não me quisessem, e tivessem o único desejo de permanecer em volta da claridade – afinal, já era tarde da noite. A claridade que provavelmente não era tão poderosa quanto eles a ponto de adentrar as paredes e iluminá-los enquanto estavam reclusos. Tinham sede de luz. Pelo menos eu me convencia cada vez mais disso.
Mas não pareciam mais ávidos por iluminação quando um deles pegou um castiçal de bronze, que ficava na estante ao lado da televisão. Aquele objeto, que lembrava apenas a calmaria da luz de velas, parecia uma arma mortal nas mãos daquele estranho ser. Mais ainda em tão inusitada situação.
Eu, que já tinha largado a frigideira, deparado com tal cena, procurei nas gavetas por um cutelo. Mas eu não tinha um cutelo, apesar de ter sido esse o objeto que tentei encontrar. Fiquei satisfeito com uma faca de churrasco. E com um garfo de carne na mão esquerda, para garantir.
Havia perdido a noção do tempo. Foi então que percebi que senti meus joelhos cansados. A luz do dia que começava invadia aos poucos a sala pelas pequenas frestas nas janelas fechadas. Foi quando o primeiro feixe tocou o corpo do que segurava o castiçal que ele me olhou nos olhos. Parecia que finalmente teríamos o embate corporal pelo qual eu esperava desde que empunhei a frigideira. Em seguida, todos voltaram suas faces para mim. Foi então que atingi a certeza de que jamais poderia combater a todos.
De que maneira eu sobreviveria a um conflito corporal com treze seres humanóides? Eles estavam todos prestes a agir de acordo com o que o tempo – o qual eu jamais pude medir – de clausura nas paredes lhes condicionou. Qual a agressividade que se deve esperar de quem passou encarcerado um período de tempo indefinível? A dúvida sobre a ação que seria praticada por todos os invasores fazia-me temer cada vez mais. Cheguei, então, a o ponto de desejar apenas não sofrer.
Foi então que eles fizeram o óbvio. Desviaram os olhares que antes miravam minhas órbitas oculares, abriram as janelas e, um a um, foram deixando meu apartamento no segundo andar, ampliando a cada passo as fronteiras marcadas em seus mapas ainda não desenhados.